Arraias de água doce
As arraias ou raias são peixes cartilaginosos assim como os peixes-serras e tubarões . Isso significa que apesar de serem animais muito diferentes, compartilham a característica terem seus corpos totalmente compostos por cartilagem, tornando-os mais leves, flexíveis e ágeis.
A maioria das arraias vive próxima ao leito marinho onde se alimentam de vermes, insetos, crustáceos , moluscos e peixes. Seus corpos achatados e suas largas nadadeiras permitem que abranjam uma área maior durante a busca por comida e facilita a camuflagem.
Arraias geralmente vivem em água salgada, porém, as da família Potamotrygonidae, encontradas apenas na América do Sul, é o único grupo de elasmobrânquios que se adaptou para viver exclusivamente na água doce1.
A família Potamotrygonidae
O histórico taxonômico da família Potamotrygonidae é repleto de enganos e incertezas. Estes animais possuem uma grande variação de cor, e indivíduos da mesma espécie podem ter padrões de manchas diferentes, portanto, a aparência nem sempre é a maneira mais precisa distingui-las.1 No passado, tal característica levou à descrição de espécies sinônimas e até hoje gera dúvidas durante a identificação2.
Além de variações nas cores e em seus padrões, há também uma grande diferença de tamanhos, podendo medir de 30 cm (P. wallacei) a 1,6 m (P. aiereba) e pesar até 110 kg, sendo um dos peixes de água doce mais pesados — junto ao pirarucu e ao piraíba .
Até o momento, são reconhecidas 31 espécies de arraias de água doce, distribuídas em 4 gêneros: Heliotrygon (2 espécies), Paratrygon (3 espécies), Plesiotrygon (2 espécies) e Potamotrygon (26 espécies). O Brasil é o habitat de 24 espécies que vivem nas principais bacias do país — sendo 22 encontradas na bacia Amazônica, 6 na bacia do Paraná e 3 na bacia do Parnaíba. 3 4
Heliotrygon
As duas espécies de arraias deste gênero são a H. gomesi e H. rosai, conhecidas como arraias-redondas por serem as mais circulares dentre todas as arraias de água doce — que são mais ovais. Apesar de terem sido descobertas há décadas só foram oficialmente descritas em 2011.
H. gomesi pode chegar a 58 cm, já o maior tamanho registrado oficialmente para H. rosai é de 80 cm, no entanto, há relatos de espécimes com 1 m. Apesar de grandes, os ferrões das arraias deste gênero são vestigiais e estão entre os menores de todas as arraias, sendo assim possuem baixa toxicidade e causam feridas pequenas — portanto, são consideradas inofensivas. 5
Ambas as espécies são acinzentadas ou acastanhadas na parte superior, mas enquanto H. gomesi geralmente não tem manchas, H. rosai tem um padrão de manchas escuras.
Paratrygon
O gênero Paratrygon possui três espécies; duas (P. parvaspina e P. orinocensis) foram descobertas apenas em 2021 e habitam o rio Orinoco na Venezula.4 A terceira e mais estudada espécie é a P. aiereba, conhecida como arraia-disco ou arraia-maçã. Esta pode ser encontrada em toda a Bacia Amazônica e seus afluentes, tanto no Brasil quanto em outros países.
A arraia-disco é uma das maiores arraias do mundo, atingindo até 1,6 m de comprimento e 110 kg. A maioria dos indivíduos, no entanto, atinge até 1,30 m e 60 kg. Se alimenta principalmente de peixes, mas pode ocasionalmente comer insetos e crustáceos — principalmente quando filhotes. É um dos animais que está no topo da cadeia alimentar em seu habitat.
Plesiotrygon
Há duas espécies deste gênero. Uma delas, a P. iwamae, é conhecida como raia-chicote por ter uma cauda longa com até mesmo o dobro do tamanho de seu corpo. O maior indivíduo que se tem registro media 65 cm de largura. Se alimenta principalmente de camarões de água doce na Bacia Amazônica — desde o Pará até a Cordilheira dos Andes na Colômbia, Equador e Peru.
A segunda espécie, descoberta apenas em 2011, foi denominada P. nana por seu pequeno porte — atingindo no máximo 25 cm de largura. Esta, é encontrada apenas no Rio Amazonas no Brasil e Peru.3
Potamotrygon
Este é o gênero com o maior número de espécies — algumas recentemente descritas. A arraia-olho-de-pavão (P. motoro), por exemplo, só foi descrita em 2009. Já a arraia-cururu (P. wallacei) apesar de ser conhecida há décadas não havia sido estudada até 2016, quando foi oficialmente descrita como uma nova espécie.6
As arraias desse gênero variam consideravelmente em padrão, cor e tamanho, com a largura do disco variando de 30 cm (P. wallacei) a 1,5 m (P. brachyura). No Brasil, a maioria das espécies habita a Bacia Amazônica, mas algumas também podem ser encontradas na bacia do Rio Paraná e Parnaíba.3
Ferroada
As arraias são consideradas os peixes cartilaginosos de água doce mais venenosos que a humanidade conhece. Algumas pessoas que compartilham seu ambiente com estes animais os consideram mais perigosos do que as piranhas ou poraquês . Apesar disso, são criaturas dóceis e não costumam atacar humanos.
No entanto, por serem animais de hábito bentônico, ou seja, que costumam ficar escondidas sob a areia, no fundo dos rios. Podem ser acidentalmente pisadas por banhistas ou pescadores desavisados. Neste caso, em comportamento defensivo giram o corpo movimentando a cauda rapidamente e introduzem o ferrão no pé da vítima.
Nem todas as arraias possuem ferrões, mas todas as arraias de água doce os têm. Cada espécie possui uma quantidade diferente, variando de 1 a 37, e tamanhos que vão de 2 cm até 37 cm. A toxicidade do veneno também difere dentro de cada espécie segundo o sexo e a idade.8 Um estudo de 2007 mostrou que em comparação com as arraias marinhas, os ferrões das arraias de água doce possuem mais células secretoras de veneno, podendo influenciar na maior gravidade da ferroada.
Ademais, diferentemente de uma lança ou agulha, os ferrões das arraias são serrilhados e possuem dentículos na posição contrária, fazendo com que removê-los cause ainda mais dano do que quando inserido — aumentando a gravidade da ferida. Além dos ferrões, algumas espécies apresentam dentículos no dorso e vários tubérculos mineralizados ao longo da cauda que também podem causar envenenamento.
O veneno das arraias causa punções, dores intensas em todo o membro, inflamação dos tecidos e necrose. Os pacientes também podem apresentar náuseas, vômitos, salivação, sudorese, dificuldade respiratória, contrações musculares e convulsões.
Acidentes com arraias costumam ter mais gravidade nas regiões da bacia Amazônica, quando ocorrem em locais distantes, isolados e muitas vezes sem atendimento médico. Ainda assim, lesões letais raramente ocorrem, exceto em casos onde o ferrão atinge órgãos vitais. No Brasil, até o momento, não há relatos de morte causada por acidentes com arraias de água doce.
Infelizmente ainda não há um antídoto específico para o veneno das arraias, e o tratamento é baseado no uso de analgésicos, anti-inflamatórios e antibióticos. Caso seja ferido por uma arraia, recomenda-se que o ferimento seja lavado em água corrente para remover a maior quantidade possível de toxina.7 Em seguida, pode-se imergir o membro ferido em água morna para aliviar os sintomas enquanto o paciente é transportado até a unidade de saúde mais próxima. Não se deve tentar sugar o veneno da ferida ou aplicar qualquer substância não direcionada ao tratamento, como qualquer tipo de óleo, manteiga, café, etc.
Ameaças e conservação
Assim como as espécies marinhas, as arraias de água doce têm crescimento lento, maturação sexual tardia e baixa fecundidade. A degradação do habitat envolvendo a expansão da agricultura, pecuária, mineração de ouro e exploração madeireira ameaçam estes animais devido aos agentes contaminantes despejados na água. Além disso, estas arraias são eventualmente utilizadas como uma fonte de alimento por ribeirinhos e são capturadas para serem criadas em aquários há décadas.
No final dos anos noventa, uma parceria entre o IBAMA e outras instituições científicas, criou um sistema de cotas para espécies que poderiam ser exportadas (regulamento n.º 022/98 e n.º 036/2003). Apesar de as estatísticas oficiais de exportação estarem disponíveis desde 1998, representam apenas uma porcentagem do que é comercializado. Embora seja permitida a exportação de pouquíssimas espécies e de uma quantidade limitada, mais de 20 espécies são exportadas ilegalmente1 em quantidades alarmantes.
A pesca é permitida em alguns locais como na foz do Rio Amazonas, porém, apesar de monitorada, não há dados sobre a quantidade permitida. Estima-se que caso a pesca não seja controlada, e a poluição e o tráfico não sejam interrompidos, haverá uma diminuição populacional superior a 80% em três gerações,9 podendo levar à extinção dezenas de espécies.
As espécies endêmicas são naturalmente mais vulneráveis que as de ampla distribuição. Apesar de serem uma parte importante da ictiofauna tropical estas arraias são pouco estudadas, e para protegê-las é importante conhecer os ambientes-chave utilizados em que vivem para serem incluídos em programas de conservação de ambientes aquáticos.
Um programa internacional para regular a exportação de arraias de água doce no comércio de peixes ornamentais é necessário, e não existem regras ou controles efetivos sobre as capturas da pesca comercial. A manutenção e conservação do habitat também são aspectos fundamentais que devem ser incluídos nos planos de gestão e precisam ser devidamente aplicadas pela legislação em vigor.1
Leia mais em:
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Lúcia, Maria & Araújo, Góes & Charvet, Patricia & Almeida, Maurício & Pereira, Henrique. (2004). Freshwater Stingrays (Potamotrygonidae): Status, Conservation and Management Challenges. 8. ↩︎
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LAMEIRAS, Juliana Luiza Varjão. Perfis protéicos, enzimáticos e miotoxicidade induzidos pelos venenos das arraias amazônicas Plesiotrygon iwamae Rosa, Castello & Thorson, 1987 e Potamotrygon motoro Müller & Henle, 1841 (Chondrichthyes Potamotrygonidae). 2013. 89 f. Dissertação (Mestrado em Imunologia Básica e Aplicada) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013. ↩︎
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Lasso, Carlos & Rosa, Ricardo & Morales-Betancourt, Monica & Garrone Neto, Domingos & Carvalho, Marcelo. (2016). Rayas de agua dulce (Potamotrygonidae) de Suramérica. Parte II: Colombia, Brasil, Perú, Bolivia, Paraguay, Uruguay y Argentina. ↩︎
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Loboda, Thiago Silva et al. Two new species of freshwater stingrays of the genus Paratrygon (Chondrichthyes: Potamotrygonidae) from the Orinoco basin, with comments on the taxonomy of Paratrygon aiereba. Neotropical Ichthyology online. 2021, v. 19, n. 02 [Accessed 13 October 2022], e200083. Available from: https://doi.org/10.1590/1982-0224-2020-0083. Epub 11 June 2021. ISSN 1982-0224. https://doi.org/10.1590/1982-0224-2020-0083. ↩︎
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The Guardian — New to Nature No 37: Heliotrygon stingrays ↩︎
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Marcelo R. de Carvalho, Ricardo S. Rosa & Maria Lúcia G. de Araújo — A new species of Neotropical freshwater stingray (Chondrichthyes: Potamotrygonidae) from the Rio Negro, Amazonas, Brazil: the smallest species of Potamotrygon ↩︎
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Lameiras, Juliana & Costa, Oscar & Dos-Santos, Maria & Duncan, Wallice. (2013). ARRAIAS DE ÁGUA DOCE (Chondrichthyes – Potamotrygonidae): BIOLOGIA, VENENO E ACIDENTES 1. Sci. Amazon.2. ↩︎
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Juliane Monteiro dos Santos, Janaína Cardoso dos Santos, Elineide Eugênio Marques, Gessi Carvalho de Araújo, Carla Simone Seibert, Mônica Lopes-Ferreira, Carla Lima — Stingray (Potamotrygon rex) maturity is associated with inflammatory capacity of the venom ↩︎
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Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção — Peixes ↩︎